segunda-feira, maio 05, 2003

Carandiru, em 1912

O problema da violência é composto por um emaranhado de fatores que se combinam e se sobrepõem. Dois desses componentes são o sistema penitenciário, que supostamente serve para a reintegração de criminosos à sociedade, e a ação da polícia. Todos temos uma vaga noção de como andam ambos no Brasil.
Dia desses vi “Carandiru”. As críticas negativas são fundamentadas, e concordo com algumas delas: o filme é teatralizado, lança-nos estereótipos etc.
Apesar desses detalhes, gostei.
Por acaso, estou lendo um livro de contos e crônicas de Paulo Barreto, o João do Rio. Comecei “A galeria superior” sem ter idéia do que se tratava, mas já o primeiro parágrafo me remeteu ao filme. Impressionantemente, era a descrição do que nos parecem ser as penitenciárias de hoje. Detalhe: o texto foi escrito em 1912.
O Carandiru retratado na telona tem o mesmo ar de “hospedaria da infâmia à beira da vida” de que fala o jornalista/cronista. Se fosse vivo, talvez João do Rio fizesse em São Paulo a mesma observação que fez sobre a Casa de Detenção carioca:
“Vive naquela jaula o Crime multiforme.”

Vale a pena ler esses trechos de “A galeria superior”:

Estão atualmente na galeria duzentos e trinta e oito detentos. A aglomeração torna-os hostis. Há confabulações de ódio, murmúrios de raiva, risos que cortam como navalhas. Com o sentido auditivo educadíssimo, basta que se dirija a palavra baixo a alguém do primeiro cubículo para que o saibam no último. E então surgem todos, agarram-se às grades, com o olhar escarninho dos bandidos e a curiosidade má que lhes decompõem a cara.

Nos cubículos há, às vezes, dezenove homens, condenados por crimes diversos, desde os defloradores de senhoras de dezoito anos até os ladrões assassinos. A promiscuidade enoja. No espaço estreito, uns lavam o chão, outros jogam, outros manipulam, com miolo de pão, santos, flores e pedras de dominó, e há ainda os que escrevem planos de fuga, os professores de roubo, os iniciadores dos vícios, os íntimos passando pelos ombros dos amigos o braço caricioso... Quantos crimes se premeditam ali? Quantas perversidades rebentam na luz suja dos cárceres preventivos?

Encontro ao lado de respeitáveis assassinos, de gatunos conhecidos, na tropa lamentável dos recidivos, crianças ingênuas, rapazes do comércio, vendedores de jornais, uma enorme quantidade de seres que o desleixo das pretorias torna criminosos. Os processos, porém, não dão custas, e as pretorias deixam dormir em paz a formação da culpa, enquanto na indolência dos cubículos, no contacto do crime, rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas. Nessa enorme galeria, onde uma eterna luz lívida espalha um vago horror, vejo caixeirinhos portugueses com o lápis atrás da orelha, os olhos cheios de angústia; italianos vendedores de jornais, encolhidos; garçons de restaurants; operários, entre as caras cínicas dos pivetes reincidentes, e os porteiros do vício, que são os chefes dos cubículos.

E a Detenção é a escola de todas as perdições e de todas as degenerescências.
O ócio dos cubículos é preenchido pelas lições de roubo, pelas perversões do instinto, pelas histórias exageradas e mentirosas. (...) Oito dias depois de dar entrada numa dessas prisões, as pobres vítimas da justiça, quase sempre espíritos incultos, sabem a técnica e o palavreado dos chicanistas de porta de xadrez para iludir o júri, lêem com avidez as notícias de crimes romantizados pelos repórteres; e o pavor da pena é o mais intenso sugestionador de reincidência. Não há um ladrão que, interrogado sobre as origens da vocação, não responda:
- Onde aprendi? Foi aqui mesmo, no cubículo.

Recolhida à sombra, nesse venenoso jardim, onde desabrocham todos os delírios, todas as nevroses, é certo que a criança sem apoio lá fora, hostilizada brutalmente pela sorte, acabará voltando. Mais de uma vez, na cerimônia indiferente e glacial da saída dos presos, eu ouvi o chefe dos guardas dizer:
- Vá, e vamos ver se não volta.
Como mais de uma vez ouvi o mesmo guarda, quando chegavam novas levas, dizer para umas caras já sem-vergonha:
- Outra vez, seu patife, hein?

Mas que fazer, Deus misericordioso? Nunca, entre nós, ninguém se ocupou com o grande problema da penitenciária. Há bem pouco tempo, a Detenção, suja e imunda, com cerca de novecentos presos à disposição de bacharéis delegados, era horrível. Passear pelas galerias era passear como o Dante pelos círculos do inferno (...).

Qual deve ser o papel da polícia numa cidade civilizada? Em todos os congressos penitenciários, até agora tão úteis como o nosso último latino-americano, ficou claramente determinado. A polícia é uma instituição preventiva, agindo com o seu poder de intimidação; (...) uma boa polícia tem mais força que o código penal e mais influência que a prisão.

A nossa polícia é o contrário.

(In Os dias passam - 1912)

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