1984, 11 de setembro e 2003
A ficção e a realidade se copiam, e cada vez mais fica difícil saber o que vem primeiro. No início de mais uma guerra estúpida (toda guerra é estúpida, mas algumas conseguem ser ainda mais que outras), a poeira sobe a cada rufar de tambores, deixando descobertos novos antigos fatos que haviam sido esquecidos.
O passado, como no livro “1984”, de George Orwell, é mutável, é transformado a cada momento e perdido, jogado nos “buracos da memória” do Ministério da Verdade por funcionários como o herói rendido Winston Smith. Os empregados que fazem a reescritura do passado são verdadeiros autômatos treinados e autocondicionados através de métodos como o duplipensar e de mecanismos de autocensura que detectam qualquer forma de crimidéia - vocábulos da genial Novilíngua imaginada por Orwell.
Mas os autômatos da realidade são menos óbvios: são políticos, jornalistas, intelectuais. Pessoas que na maioria das vezes logram estar fazendo tudo corretamente – acreditam no que fazem, crêem nas idéias que reproduzem e nas opiniões que formam às vezes quase sem querer.
Assim como em “1984” “a Oceania sempre esteve em guerra contra a Eurásia”, mesmo que até dois dias antes estivesse em guerra contra a Lestásia, os EUA sempre foram contra Saddam Hussein, Osama bin Laden e o Talibã, nunca utilizaram assassinos fundamentalistas para se livrar da Rússia no Afeganistão, nunca foram líderes do terrorismo mundial, invadindo, embargando e reprimindo “legalmente” países pobres e governos legítimos como os da Nicarágua e Chile, para citar apenas dois casos.
O que é muito comentado e está constantemente nos meios de comunicação torna-se verdade, assim como o que é pouco ou nada falado transforma-se em calúnia, fruto da inveja dos que são contra “os ideais da liberdade”, ou simplesmente vira poeira da História oficial. “Esquece-se” de que os EUA são o único país do mundo a ter recebido uma condenação da Corte Mundial por “uso ilegal da força”, um eufemismo para terrorismo internacional. Sim, em 1986, por haverem invadido a Nicarágua, os EUA foram condenados a voltar atrás e pagar uma reparação substancial. Em resposta, intensificaram os ataques ao pequenino país, que recorreu então ao Conselho de Segurança da ONU, o qual passou a discutir uma resolução determinando o cumprimento das leis internacionais. A resolução foi vetada...pelos Estados Unidos, claro – os mesmos EUA que agora rechaçam os vetos anunciados de França, Rússia e Alemanha.
Fatos como esses vez por outra passeiam por veículos de comunicação norte-americanos, mais em peças de opinião individuais do que em matérias ou editoriais. Mesmo assim, nem chegam perto de jornais como o conservador Washington Post (se alguém tiver lido algo que prove o contrário, por favor, me corrija), e mesmo um jornal dito mais “liberal” como o NY Times dá mais espaço ao establishment e à megalomania patética daquele tapir chamado Jorge Arbusto do que a qualquer forma de jornalismo consciente e digno de true storytellers. E há sempre um representante da ultradireta como o William Safire para dizer besteira, ainda que o sensato-mas-assim-mesmo-americanóide Thomas Friedman proporcione aos leitores uma ou outra pérola de bom senso. Mas o consenso fabricado é, ainda assim, perpetuado.
Aqui no Brasil, às vezes somos brindados por artigos esclarecedores, entrevistas interessantes (como a de Noam Chomsky no Globo de ontem) ou matérias contra a amnésia coletiva feitas por repórteres como Toni Marques, José Meirelles Passos e outros. Apesar de nossa subserviência, em um momento de crônica de um ataque anunciado, pessoas elucidativas surgem e ajudam a colocar os pingos nos is – é claro, pois só temos a perder com essa guerra inventada e com hora marcada. Além dos relatos que lemos nos jornais nacionais, não sei como a história anda na imprensa de outros países. Do pouco que leio on-line na norte-americana e vejo na CNN e do muito que acompanhei por lá de agosto de 2001 a julho de 2002, o clima é mesmo de “1984” – o passado molda-se aos interesses do presente, e o sistema de lavagem cerebral começa no jardim de infância, com um patriotismo doentio que beira a xenofobia, mas sempre em defesa da “liberdade” e “democracia”. E esse mecanismo doentio reina também nas redações.
Há inúmeros fatos que a esquecida grande imprensa norte-americana não menciona.
Coincidentemente no ano (real) de 1984 e no anterior, o atual secretário de Defesa (ou seria de Ataque?) Donald Rumsfeld visitou Saddam Hussein, como enviado especial do governo Reagan, e chegou a apertar suas mãos. Desde 1982 os EUA haviam passado a ajudar o Iraque na guerra contra o Irã, então governado por fundamentalistas islâmicos inimigos de Tio Sam. Em março do cabalístico ano de 1984, o rascunho de uma declaração para a imprensa afirmava que, a despeito da condenação de armas químicas (que Saddam usava contra o Irã e usaria em 1988 para matar cinco mil pessoas na cidade curda de Halajba, no Iraque, com o apoio norte-americano), os EUA consideravam o regime iraniano intransigente por ter “o objetivo confesso de eliminar o governo legítimo do vizinho Iraque” (do Arquivo de Segurança Nacional dos EUA, em matéria de O Globo). Então o governo do Iraque só passou a ser ilegítimo em 1991, originando a Guerra do Golfo, e voltou a representar “perigo para o mundo” agora, em 2003, após o fracasso na captura de bin Laden depois do 11 de setembro de 2001??
Os EUA usam, como se sabe, vários pesos e várias medidas. Se necessário, revogarão a Lei da Gravidade e Bush mandará Newton para a cadeira elétrica texana – e provavelmente ficará surpreso ao ser informado de que o autor de tal lei morreu bem antes de John Wayne nascer. Bush Jr. coloca Iraque, Coréia do Norte e Israel em balanças diferentes. Aliado histórico norte-americano, Israel tem armas de destruição em massa, nunca permitiu inspeções da ONU e ainda recebe de Washington uma ajuda anual de 5 bilhões de dólares. Desde 1992, os EUA, que agora rechaçam os vetos anunciados na ONU, vetaram 30 resoluções da organização contra Israel. Um bom exemplo da lei da relatividade dos Estados Unidos são as razões brilhantemente apontadas por José Arbex Jr., na revista Caros Amigos, para a condescendência de Bush para com a Coréia do Norte, integrante do “eixo do mal” tanto quanto o Iraque: a Coréia do Norte não tem petróleo; o Iraque não é vizinho da China, atualmente a potência mais odiada e temida pela Casa Branca; e Japão e Coréia do Sul, aliados dos Estados Unidos, não ficariam contentes com uma guerra nas suas fronteiras. Simples assim.
Esse texano fraudador das eleições, homem que traz à tona a natureza tragicômica da produção e consumo frenético e insaciável de lixo cultural e político norte-americano, presidente que se confunde com a festejada ode à alienação personificada no herói imbecil Forrest Gump, é nada menos que chefe da maior nação do mundo: o país que detém cerca de 50% da riqueza mundial é regido por um maestro axiomático arrogante que sofre de oclusão mental e joga xadrez com parcos conhecimentos de jogo de damas. Um chefe de Estado que, se houver um pouco de justiça histórica, será alvo de comiseração no futuro – a não ser que mecanismos equivalentes aos dos criadores do Grande Irmão de “1984” façam com que boa parte dos acontecimentos sejam reinventados under rug swept.
Não há como pensar em um “choque de civilizações” ou algo no gênero; hoje a idéia chega a soar tosca. O que há, como na maioria das vezes, é um choque de interesses. Interesses que ameaçam nações que se autovangloriam por serem democráticas, mas que usam políticas arbitrárias e imperialistas, incompatíveis com a vocação de um Estado verdadeiramente democrático. Caberia repetir Noam Chomsky, citando as palavras de Ghandi: perguntado sobre o que achava da “civilização ocidental”, o pacifista indiano respondeu que poderia ser uma boa idéia.
É difícil não cair na piada: os Estados Unidos devem realmente saber de cor quantas armas de destruição em massa o Iraque tem – a não ser que não tenham guardado os recibos. A ONU é peça de decoração no cenário mundial, e o máximo que a parte decente do mundo (mesmo que composta de pacifistas por interesse, como França, Rússia e Alemanha) pode fazer é continuar reclamando, noticiando e esclarecendo, tentando inverter a pirâmide ideológica e derrubar a visão limitada criada pelos propagandistas do governo norte-americano que mais parecem aprendizes de Goebbels. No mais, é esperar para ver o que acontecerá aos miseráveis civis iraquianos e ao mundo todo, agora que o pirracento Bushinho ligou seu videogame e apertará os botões que desejar.
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Pílulas:
Por que toda guerra é estúpida: o mundo torra quase 900 bilhões de dólares em gastos militares (só os EUA devem chegar a quase 390 bi este ano) e 86 milhões de pessoas morreram em conflitos desde a Segunda Guerra.
Por que alguns dizem que o que Bush quer é petróleo: o Iraque tem a segunda maior reserva de petróleo do mundo, só perdendo para a Arábia Saudita – aliada histórica dos EUA.
Por que é interessante para o governo dos EUA provocar pânico na população: entre outros motivos, os EUA estão entupidos de problemas econômicos internos, mas Mr. Arbusto usa e abusa da emoção para explorar extremamente o patriotismo e colocar a guerra contra o Mr. Evil no centro das atenções, como se Saddam liderasse os ETs do filme “Independence Day”. O presidente, que era motivo de piada interna, virou herói depois de 11 de Setembro de 2001. O ataque ao Afeganistão abafou a divulgação das provas de irregularidades nas urnas da Flórida; a "guerra ao terrorismo” desviou as atenções dos escândalos de corrupção envolvendo Bush II e Dick Cheney. Além disso, a imprensa logo “deixou para lá” o massacre de civis no Afeganistão e a prática de tortura na base de Guantánamo, em Cuba, contra prisioneiros acusados de pertenceram à Al Qaeda. E por aí vai...
Perdas humanas: na guerra do Golfo de 1991, cerca de 35 mil civis foram mortos. Desde 1991, cerca de 1,5 milhão de iraquianos morreram devido ao embargo imposto ao país. O Pentágono prevê cerca de 10 mil mortes de civis no ataque de agora; já a ONU prevê 350 mil, mais um milhão de desabrigados.
Arrogância e cinismo é com eles mesmo: a máquina militar norte-americana, além de testar um brinquedinho apelidado de “mãe de todas as bombas” (Moab), pôs em órbita recentemente mais um satélite-espião onde se lia “Espírito 11 de Setembro” e “Let’s roll” (algo como “vamos botar pra quebrar”). Uma gracinha de adolescente com neuras fálicas.
Bushinho não sabe que o lobo se fantasia de vovozinha para comer a Chapeuzinho: “Se isso (o governo de Saddam) não é mal, então o mal não tem uma definição”, disse Baby Bush, o descobridor da pólvora. Jura? Só agora ele percebeu que o mal não tem uma definição! Pois, se tivesse, os EUA não teriam dado a Osama bin Laden a formação terrorista da CIA, não teriam dado o poder a Saddam contra o Irã, não teriam colocado o Talibã no poder no Afeganistão quando lhes interessava...A cara do mal é aquela escolhida por Bush I, Bush II, Reagan, Kissinger ou quem quer que tenha condições de “enganar” o mundo.
Okay, você venceu, batatas fritas: na onda das french or freedom fries, daqui a pouco Bush vai mandar trocar a música do South Park para Blame France.
George W.C. Bush nunca leu Dostoievski: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”, disse o russo. Para Bushinho, Deus existe e permite atrocidades em Seu nome, como a ignorância de se denominar “Cruzada Contra o Terrorismo” sua guerra particular em Tora Bora, na qual quis enquadrar o mundo. Obviamente ele levou uma chamada de alguém pouco mais bem-dotado de semancol e trocou o nome para “Guerra ao Terrorismo”. A incoerência religiosa chegou a tal ponto que fez o papa pedir a Bush que pare de mencionar Deus em seus discursos belicosos.
Pergunta ingênua: Por que os 356 correspondentes da CNN parecem papagaios amestrados do Ari Fleischer??
Telhado de vidro: o Iraque não possui nenhuma ogiva nuclear; os EUA são donos de mais ou menos 10 mil.
Países que possuem armas atômicas: EUA, França, Rússia, China, Inglaterra, Índia, Paquistão, Israel. Ah, e o Iraque, claro.
The real axis of evil: Bush, Blair and Aznar.
Novo filme independente de terror norte-americano: O Bush é de Blair. (Essa é péssima)
Eu já sabia: o primeiro lugar em que pisei nos Estados Unidos pré-september 11th foi o Texas. Já no aeroporto, cartazes exibindo um ser de botas e arma de caubói e com os dizeres “Don’t mess with Texas!” lembraram-me que aquele era o estado onde foi criado o presidente. Não podia dar certo.
Leituras recomendadas:
Chomsky, Noam. 11 de Setembro. Orwell, George. 1984. Bush, Baby. www.bushisms.com
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