segunda-feira, dezembro 23, 2002

Dia 23 de dezembro, espírito natalino, árvore linda na Lagoa...Teria que falar alguma coisa sobre o Natal. Mas este ano meu Natal não é dos mais felizes, e estou com preguiça de falar sobre isso. Nesta época em que, apesar de quase todos já terem esquecido, se comemora o nascimento de Jesus (e não as vendas recorde nos templos do consumo), eu fico assim meio tristonha, mais melancólica do que o normal, meio reflexiva sobre tudo o que fiz de mal e tudo o que poderia fazer para melhorar o mundo, ou pelo menos o Rio de Janeiro, ou minha casa, ou eu mesma - se efetivamente parasse para pensar sobre isso com mais freqüência, e não somente no dia 23 de dezembro.
Enfim, não vou falar sobre o Natal, sobre a perda de significado desta data simbólica (não, Jesus não nasceu dia 24 de dezembro do ano zero). Em vez de nascimento, vou falar sobre morte. Mais precisamente sobre um enterro.

O enterro de Dona Glória

“Dotô Renato, essa é minha filha que eu falei pro sinhô”. O doutor da Barra da Tijuca apertou a mão da moça negra jeitosa e disse: “Ah, sim, como vai? Vou falar com o pessoal lá do sétimo andar e ver se eles precisam de alguém.” O olhar sincero de alívio e agradecimento transbordou do pai da moça. “O sinhô não sabe o quanto isso ia ajudar, Deus lhe abençoe.”
Uma ponta de esperança surgiu pra alguém, no enterro de uma pessoa querida.
E eu, que já fui a vários enterros, me comovi com este, o mais simples de todos. Nunca tinha visto coveiro de verdade, desses que entram mesmo na cova, puxam o caixão, jogam a terra para dentro com a pá e vão embora dizendo “Deus os conforte”, com os pés cheios de terra.

Cemitério de pobre tem esse cheiro: terra. De rico cheira a flores, madeira, cimento. Nos pés, até havaianas - não as havaianas fashion, mas as havaianas da necessidade. Ninguém desfila pérolas. Não há dezenas de coroas de flores. Poucos usam óculos escuros. As lágrimas não são douradas, cheirosas, não se transformam em cristais. Mas o choro é o mesmo.

E a gente discutindo por bobeiras, querendo dinheiro, acumulando coisas, guardando, guardando, guardando. Entupindo nossas vidas de matéria morta para dar um sentido cínico ao que realmente somos: poeira estelar...

A última moda agora nos Estados Unidos é transformar os restos mortais de entes queridos em diamantes. Pela módica quantia de dez mil dólares (ou mais, dependendo do quilate) pode-se andar com o morto a tiracolo, ou melhor, pendurado no pescoço ou enfeitando dedos!!
Não quero que meus restos mortais virem um diamante. Prefiro tentar ser preciosa em vida, e espero ter tempo para isso. Como a Elis cantava: “..Quando eu morrer, me enterrem na Lapinha...Calça culote, paletó, almofadinha...” Por mim, basta que meu corpo vá para o São João Batista, perto da minha família. E num vestidinho simples, sem maquiagem, só eu, sem alma. Não me assusta...Antes da morte, tenho medo da vida.

Quero fazer proveito dela, me desvencilhar desse ciclo vicioso de criação de necessidades estúpidas, e carregar comigo uma alma em paz, sem pérolas nem diamantes, só um rastro de bondade.
Faz-me lembrar o ensinamento de minha sábia manicure: o que vale nessa vida são as pessoas que a gente conhece, os momentos que vive, os lugares que visita. Nada do que compramos ou choramos porque não podemos ter é guardado. “Afinal, caixão não tem gaveta”, diz ela.

Assim foi Dona Glória: guardou muito na boa alma e muito mais deixou em sementes espalhadas pelo vento.

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