Como sobrevivi ao Coliseu da Globo
Não há nada menos dinâmico do que dinâmica de grupo. Fiquei quatro horas sentada em uma daquelas cadeiras de braço, pernas civilizadamente cruzadas e postura ereta. Queimei a mufa e gastei a voz discorrendo sobre as maravilhas de ser eu mesma. Saldo: dor nas costas e nenhuma noção sobre minhas chances reais de destronar a Fátima Bernardes.
Cheguei à TV Globo, na Rua Jardim Botânico, às 15h40. Tentando não rebolar em minha calça azul-marinho com caimento desconcertante para meu protuberante derrière, peguei o crachá e sentei no sofá da recepção – eu e outros 17 aspirantes a globais. Com aquela sensação de soldados aliados desembarcando na Normandia em 6 de junho de 1944, olhávamos atônitos uns aos outros analisando o inimigo e disfarçando nossa pusilanimidade coletiva. Na TV unicanal da recepção, o pior de tudo: a reprise da novela Por Amor. Não bastasse o mal-estar da pré-guerra, ver a Regina Duarte choramingando para explicar por que deu o filho pra chata da Maria Eduarda é dose. Mas sobrevivi e, graças a Deus, a mocinha da Highflyers Recursos Humanos nos chamou para iniciar o inquérito.
A dinâmica, terceira fase do Processo Eterno de Seleção de Estagiários da TV Globo, estava marcada para as 16hs, e começou quase pontualmente. Nós, humildes universitários tendo nossos nomes em etiquetas nada discretas coladas na roupa, nos dispusemos em formação “U” em nossa arena, esperando o triunfo ou a morte na boca dos leões.
Alguns minutos de espera foram infinitos, como os segundos que duram aproximadamente 78 horas em momentos de tensão. Eu até que estava relaxada, por incrível que pareça, e resolvi me divertir com a situação. Não há nada mais engraçado do que analisar as extremidades do corpo quando as pessoas estão tensas. As mãos suavam, ajeitavam os cabelos, batucavam na mesa ou ficavam inertes sobre as pernas. Os pés - ah, os pés.....Quase todas as meninas (eram 14 comigo) usavam sandálias pretas e, como que por instinto, balançavam um dos pés, aquele que fica por cima da perna cruzada. Os olhares eram baixos, um sorrisinho nervoso de vez em quando...E foi anunciada mais uma prova escrita – para meu alívio, ainda não tínhamos que falar em público.
Quarenta minutos para resumir em dez linhas uma notícia da Veja sobre representações do PT contra o PSDB no TSE e escrever 30 linhas sobre “liberdade de expressão”. A gente passa no vestibular e acha que está livre dessas coisas...Dei minhas viajadas básicas e resumi a notícia com o maior cuidado.
Vimos então um vídeo daqueles de primeiro período da faculdade sobre “os bastidores da Globo”, apresentado pelo alegre-além-do-ponto Zeca Camargo, e preenchemos mais celulose para escolher as áreas de nosso agrado.
Aí a parte embaraçosa: descrever sua experiência e falar bem de si mesma. Eu podia ter dito “Tenho 1,80 metro e muito a contribuir para a felicidade do Bonner”, mas resolvi ser mais convencional e contei sobre minha vidinha infame mesmo. Não antes de o coração pular e as mãos darem aquela tremida, cuspi sem circunlóquios o que veio à cabeça sobre vôlei, faculdade, Unibanco, Último Segundo, Veredas, História, San Diego, Festival do Rio etc. Só mais tarde me dei conta de que excluí uma passagem-relâmpago que fiz no RJTV há dois anos, quando pude acompanhar o processo de produção do jornal até edição e ir para a rua com os repórteres. Simplesmente esqueci. Ato falho?
Anyways, depois dessa as moças dividiram a tchurma em três grupos e definiram que cada um seria um novo ministério criado pelo Lula e que deveria criar uma medida polêmica. A meu grupo coube o Ministério da Ética Empresarial, e em cinco minutos elaboramos que, através de uma Medida Provisória, seria instituído o acesso irrestrito da Justiça a contas bancárias e telefônicas de toda e qualquer empresa nacional. Decretamos o fim do sigilo bancário e telefônico!!! Nunca me senti tão poderosa. Debatemos então sobre esse e outros temas inverossímeis (será?) como a reformulação do ensino de História para abrigar a visão de negros e índios sobre a colonização do Brasil e a prisão de pais cujos filhos não estudam. Éramos, como diria minha amiga antropóloga Maria Paula Miller (a Mary mesmo), 18 “lutadores de Vale Tudo Verborrágico tentando agradar, como ursos no circo”. Patético, mas divertidíssimo.
Depois dessa luta de gladiadores da Língua Portuguesa, em que falei o que queria, fui questionada e até provoquei alguns risos, para deleite de meu ego em apuros, mais papéis nos foram entregues. Respondemos às mais variadas perguntas sobre telejornais e programas de TV que assistimos, livros que lemos, revistas, jornais, quem foi Carlitos, o que gera a inflação, por que a mídia dá tanta importância à oscilação do dólar, quem é o pintor preferido (incluindo análise das imagens e do propósito da obra), além de um quadrinho para definirmos personalidades tais como John Kennedy, Nelson Mandela, Winston Churchill, Saddam Hussein (escrito errado, por sinal), Ghandi, Juan Miró. (Nesse último me deu uma vontade irracional de dizer “é o cara que fumou um e desenhou a bailarina que está nas costas da Pepa”, mas aí podiam confundir com o Carlinhos Tatoo).
A esta altura eu já tinha olhado para o relógio umas 37 vezes, pois tinha deixado meu carro trancando outro, mas não podia imaginar que ficaria quatro horas no coliseu da Globo sendo sabatinada pelos leões da Highflyers. Graças, quando cheguei o carro não tinha sido rebocado ou arranhado e nem tinha um menino de 11 anos algemado ao volante e pisando em cacos de vidro após tentativa frustrada de levar meu rádio paraguaio para vender por 50 paus pra uma cooperativa de táxi (fato verídico).
Mas o pior de tudo, o que mais atrapalhou minha performance, o clímax de minha odisséia global: a sandália indecente da Jane ou sei lá qual era o nome da Imperatriz no Coliseu. A Jane (?), cabelos curtíssimos e óculos, ficava ali, no meio da arena, falando, explicando, tentando ser legal – ela até parecia legal mesmo, ou senão era muito convincente. Mas eu não conseguia desgrudar os olhos de seu chinelinho preto de plástico brilhante, aquele vetusto calçado que exibia uma descomunal rosa negra em altíssimo relevo e que tapava o peito do pé inteiro. Era um atentado ao pudor, ela deve ter feito isso de propósito, tipo “quem conseguir manter a concentração no que eu falo mesmo com essa aberração nos pés está aprovado.” Já tenho boa desculpa para uma possível desclassificação.
Resumo da ópera: ao fim da prova, sentia-me não-burra, mas também não-brilhante, e certamente menos tímida do que sei que sou em situações que vão da bizarrice à mais pura normalidade.
E lá fui eu, feliz e contente, mas antes de tudo indiferente quanto ao meu futuro ou ao da Fátima Bernardes. Mesmo sabendo que, na próxima segunda, se eu receber um daqueles bilhetinhos infames agradecendo a presença e me elogiando para dizer que não me querem na próxima fase, vou respirar fundo e dizer, no melhor estilo capitão Haddock dos livros do repórter aventureiro TinTin: Sátrapas! Nefelibatas! Iconoclastas! Colonizados coniventes que sacanearam o Lula na edição do debate há uma década e hoje lambem os pés dele! Eu não queria trabalhar aí mesmo...
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