quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Auri sacra fames

- São dez anos para eu poder dar entrada num apartamento, e mais dez para pagar as prestações. São 20 anos com a preocupação de dar tanto por mês para a Caixa Econômica.

- Vinte anos passa rápido!

- Passa nada, é uma vida...

- Um ano é uma vida, e às vezes 100 anos são uma vida...Você vai ver que cada mísero centavo trabalhado, suado, vale a pena.

- Quer saber? Meu sonho é arrumar um emprego em que eu ganhe um pouquinho melhor para eu poder comprar um carro legal. Estou cansado de tanto ônibus na vida. Queria ganhar um pouquinho mais.

- Meu sonho é arrumar um emprego em que eu trabalhe um pouquinho menos...


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Após mais esse papo bizarro pescado sem-querer-querendo na maior sauna pública do Rio de Janeiro, o elevador da Uerj, eu fiquei aqui pensando com os meus botões.

Suponhamos que eu ganhe $ X por mês, para fazer quatro trabalhos durante 8 horas por dia. Se recebesse duas opções: 1) trabalhar 10 horas, fazendo cinco trabalhos, e aumentar meu salário em 25% ou 2) trabalhar 6 horas, fazendo três trabalhos, e diminuir meu salário em 25%. Suponhamos que X menos 25% sejam suficientes para eu viver. O que eu faria? O que a maioria das pessoas escolheria???

A resposta é a seguinte: o capitalismo é a força mais significativa de nossa vida moderna. A aquisição é encarada como finalidade, e a necessidade é um conceito flutuante, que se desmancha no ar. O trabalho, cada vez mais executado como um fim em si mesmo, como uma "vocação", confunde-se com o dinheiro. Há pessoas que acreditam seriamente que sua vocação é ganhar dinheiro, "fazer" dinheiro.

A história econômica pode ser pensada a partir de dois pilares: a satisfação de necessidades e a aquisição. O problema é que a aquisição deve ser constante, e as necessidades, etéreas, liquefazem-se e renascem sob novas formas a cada momento. O conceito de necessidade, hoje, confunde-se com moda, materialismo vazio, bem-estar frívolo, status.

(Não entro aqui na discussão "socialismo ou barbárie". Tô fora dessa. Sem papo de superestrutura. Mas noto que, à medida que amadurecemos, as coisas passam a simplesmente ser o que são, porque assim sempre foram. Por isso gosto de questionar, mesmo sabendo que meus questionamentos não irão mudar o mundo - talvez não mudem nem a mim mesma, uma fraca marionete. Pode ser que amanhã eu considere natural um impulso consumista. Isso não me transformará numa hipócrita. E, no dia seguinte, voltarei a questionar essa razão instrumental que me rege, essa metafísica vulgar, frugal, eudemonista, que controla nossas vidas.)

Voltando da pequena digressão: o que quero dizer é que quem não adaptar sua vida às condições de sucesso capitalista será facilmente sobrepujado. A não-adaptação não é uma escolha aceitável, pois corresponde, em última instância, ao esquecimento do dever. O dever provém não de um mero bom senso, mas de um ethos particular, que, em nossa visão arrogante e metonímica, nos parece ser um ethos universal. O capital, tomado como um fim em si mesmo, encobre um ethos tão arraigado que chega a ser quase transcendental, superior à própria idéia de "felicidade".

As virtudes, hoje, são utilitárias. Virtudes nobilíssimas são a eficiência, a produtividade. Honestidade ainda é uma virtude porque assegura o bom funcionamento, o crédito, a credibilidade. Mas até a honestidade caminha rumo ao limbo das virtudes relativizáveis.

Um dos problemas decorrentes de todo esse processo é a idéia do dever profissional, tão peculiar à "ética social" da cultura capitalista, como disse Weber. Essa idéia leva as pessoas a sentirem uma obrigação quase irracional quanto ao conteúdo de sua atividade profissional, independentemente do que ela comporta. Por isso vêem-se tantos imbecis se vangloriando do "dever cumprido" ou proferindo frases prontas e estúpidas como "estou fazendo apenas o meu trabalho".

Creio que nem sempre foi assim. Um dia, a oportunidade de trabalhar mais e ganhar além do necessário foi menos atrativa do que a de trabalhar menos e ganhar o suficiente. Não pode ser verdade que esta compulsão pelo excesso e pela criação de novas necessidades seja imanente ao ser humano. A ditadura da produtividade deixa as pessoas infelizes, mas penteadas e cheirosas, social e plasticamente aceitáveis. As pessoas, mais que as coisas, são úteis. Sei lá; muitos que eu conheço, quanto mais trabalham, mais tempo lhes sobra para que trabalhem ainda mais. Os que não trabalham mais ficam enrolando, fingindo que estão atarefados. Acabar o trabalho cedo é feio, vergonhoso. Não ter ambição é humilhante, quase anti-ético.

O ser humano existe em razão de seu negócio, ao invés de se dar o contrário. Isso foi dito por Weber há exatos 100 anos, em 1904. Ainda assim, eu acredito que esse instinto perverso, essa auri sacra fames, não seja natural - muito menos irreversível.

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