segunda-feira, novembro 17, 2003

R.S.D.

Ainda acredito nos sonhos impossíveis e torço para que eles dêem certo. Torço não: eu tenho a certeza absoluta de que eles vão acontecer. Tenho espasmos cerebrais diários, e em cada um deles me convenço de que isso aqui que estou vivendo é uma coisa boba, legal mas inconsistente, e que na sublimidade é que reside a minha vida. Vivo mais de olhos fechados. O que não me impede de aproveitar cada minuto de visão consciente e pragmática.

Tenho essa mania estranha de buscar a totalidade. Eu já desconfiava disso, mas um dia, num desses testes psicológicos a que os técnicos insistem em submeter seus sãos atletas, a senhora ruiva de óculos imponentes e voz macia me disse isso: você busca a totalidade em tudo, por isso vive insatisfeita, esperando algo mais, esperando que a roda se feche. Isso só porque no borrão roxo cheio de detalhes eu enxergava uma enorme borboleta. Mas eu acreditei nela. Meu tempo não é linear. Como o dos gregos, meu tempo é cíclico.

Então cada vez que eu viajo na minha gigantesca empada viscosa eu vislumbro uma vida toda diferente, e acredito que vou vivê-la com a mesma intensidade dos meus pensamentos. Acredito piamente que meus sonhos antigos não-realizados vão se tornar realidade, mesmo os que não fazem mais sentido. Meus caprichos que não deram certo, esses eu mando para o arquivo sete gavetas abaixo do cerebelo. De repente, um dia, se me encontrar na ausência total de sonhos (seria a morte?), posso desenterrar um deles e ver o muso da terceira série apaixonado por mim, posso trocar a medalha de prata pela de ouro no campeonato de queimado, posso ser convidada para aquela festinha da outra turma ou ter coragem para abandonar a vassoura pelo menino bonitinho que me olha.

Meu cérebro é infinitamente repleto de algum tipo de ácido que me traz ao que deve ser a verdade. Essa Renata in the Sky with Diamonds, incorrigível eterômana, de quando em quando entra num videoclipe tosco, que às vezes tem características jocosas como uma musiquinha tola do Matchbox Twenty ao fundo, bem melosa, câmera lenta, choro na chuva, casal vestido pulando ondas na praia, menina pensativa agarrada a bichos de pelúcia, uma carta antiga, cachorrinho de olhar macambúzio, um campo verde com sol baixo, flashbacks de sorrisos de pessoas amadas que partiram e uns cortes repentinos com aquelas flores bregas de videokê. Esses incontáveis clipes ficam armazenados numa warehouse com fuleiras estantes de ferro exibindo desorganizadas fitas prontas para o uso. E cada vez que eu aperto o play e aumento o volume é uma nova avant-première a que só eu, a prestidigitadora-mor, assisto.

Não adianta me dizerem que não vai acontecer, que eu sou louca e tal. Porque eu tenho certeza de que a sensação de vencer aquele campeonato especial, aquele momento ouvindo "Samurai" num elevador na França, o abraço apertado da tia querida, aquela viagem maravilhosa, aquelas palavrinhas mágicas "eu te amo" ouvidas pela primeira vez, as palmas do meu pai na arquibancada, aquela praia na Sicília, aquele pôr-do-sol em Sunset Cliffs, aquela tarde lendo Tintim no ar-condicionado com minha avó, aquela noite em claro conversando em Long Beach, as cachoeiras de Mauá, aquele elogio na aula de balé, a crise de riso sem motivo algum, a nota boa na prova mais difícil, aquele telefonema de convocação, aquele desfile em Mar del Plata: todos esses instantes ainda existem, à parte e dentro de mim, esperando para serem revividos. E a maior alegria é sentir que, quem sabe até os 34, 75 ou 103 anos, outras centenas de momentos como esses serão guardados nesse cofre enigmático que eu, só eu, tenho a chave.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente aqui. Com educação, por favor.