Sobre o significado ôntico de uma pérola do vernáculo
Desculpem os maus modos: f***-se. Ahhhlívio.
Até 127 dias atrás - antes de encontrar no cosmos certas criaturas que usam a palavra f***-se como filosofia de vida - esse vocábulo cheio de sentimento e plenitude não fazia parte de minha vida fônica. Ainda não o verbalizo, menina educada que sou, mas não me furto a exclamar "dane-se", "exploda-se", o colonizado "wathever" e afins, sempre tendo em mente este termo algorítmico que é capaz de encerrar o admirável mundo e suas mazelas, o egoísmo humano e as sinecuras da vida, a caspa e o shampoo, a Xuxa e a Mara Maravilha.
Tal expressão é um sedativo quase poético. A taxa de juros vai cair 2%? O Rio vai sediar as Olimpíadas de 2012? A Volks vai remanejar quatro mil funcionários? A reforma da Previdência será quase inócua? A Tributária está virando pastelão? O Manoel Carlos vai matar a Fernanda? O Lula não usa casaca? Pagodeiros e roqueiros se trucidam no aeroporto? A todos o meu grande F***-SE. Em letras CAPITAIS.
F***-se é termo tão dinâmico que vira adjetivo. "Dias f***-se" são aqueles em que a gente tem certeza de que nada que faz, fez ou fará vai mudar coisa alguma. São dias unilaterais em que conspurcamos o desimportante do mundo - que, normalmente, coincide com o mundo todo. Nesses dias dou uma zapeada, paro no William Bonner e tudo o que ele diz não tem relevância alguma. Aí eu desligo com prazer, aquele fade lento que começa no chumaço de cabelos brancos dele, deforma-o por centésimos de segundo e puf!, lá se vai o súbito culpado pela TPM do universo.
Em dias assim eu quero comer algo doce, mas nem chocolate suíço me apetece. Descubro que é fome de salgado, mas qualquer prato me enjoa. Passo o dia com vontade de ler aquele livro, mas, quando chega a hora livre, desisto após meia página. Então fica a sensação de gula velha e ressequida, de fome de estômago e espírito. O jornal é estúpido, o trabalho inócuo, os amigos longínquos ou automatizados.
Mas nada disso me deprime: pelo contrário, a sensação de desprendimento que momentos de puro e legítimo f***-se nos permitem é reconfortante. F***-se é, no fundo, uma palavra doce, apesar de imperativa, egoísta, reflexiva no alheio. Ao contrário de f**a, vocábulo amargo, desesperançoso, que eu, moça de primorosa educação e delicadeza, costumo substituir por "fogo". Incrível a diferença que um pronome oblíquo faz nessa vida.
F***-se, eu diria, desafia o Português. Diz mais do que alguém pode pretender ao pronunciá-la, é quase um pleonasmo, é a experiência enclítica última - e ainda carrega a suntuosidade de uma proparoxítona. Toda essa reflexão levou-me a buscar na filosofia uma definição digna para tal mistério morfossintático e semântico: assim como a útil expressão "pra cara**o" tende ao infinito - como alguém já disse -, descobri que f***-se é um termo ôntico. A saber: designa "uma atitude tal em relação ao ente que o deixe ser em si mesmo, no que é como é." Esse Heidegger devia encher a boca ao mandar seu ôntico f***-se.
Mas, muito além de qualquer análise gramatical ou filosófica, a maior virtude do termo em questão é possibilitar-nos uma aferição quase pueril: a felicidade não é plenitude, mas vácuo.
E, se não for, F***-SE. Em letras garrafais com neon piscante.
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