quinta-feira, junho 12, 2003

Mea culpa in diem

Eu poderia ter um mínimo de decência para salvar uma vida ou escrever um romance.
Dar alguma relevância à existência em vez de ficar me lamentando por minha personalidade e meus problemas. Podia ter um pouco de coragem para preencher lacunas externas. Equilíbrio demais é perigoso. Remoer a própria vida mata. Sem glória.

Eu deveria infringir alguma lei inútil, mudar um ponto de vista, influir na consciência coletiva. Reinventar arquétipos, refundar a contracultura, rebater resquícios positivistas. Eu deveria confluir mundos, e não contribuir para as segregações; explicar o que entendo, e não complicar o pouco que sei.

Poderia distribuir conhecimento em pílulas, dar as mãos a todos os garçons e protestar contra a calabresa, tomar um chope com os flanelinhas e exigir a abolição das notas de um real, pregar com os jovens malabaristas cartazes nos sinais contra o preço das bolinhas de tênis. Eu deveria ter menos prazer em escrever e mais em fazer aquilo em que acredito. Não gastaria meu tempo rabiscando num caderno azul ou digitando bobagens num site egocêntrico, e sim teria o mínimo de compostura para abstrair desejos auto-afirmativos e canalizar minha já escassa energia para qualquer evento que me excluísse. Deveria ser diferente não porque a diferença é um trunfo na sociedade de corpos pasteurizados, mas porque o agir de forma atípica e anônima me levaria a fazer qualquer coisa de interessante por princípio, e não pelo efeito de satisfação e reconhecimento pessoal.
Não deveria deixar minha alma liquefazer-se tão rapidamente.

Eu deveria fazer com que as pessoas entendessem que esquimós passam urina nos cabelos e comem carnes putrefatas, homens russos cumprimentam-se com beijos na boca, o hambúrguer é tão inocente quanto o Islã e não há vergonha alguma em morar na Pavuna. Eu deveria ser a primeira a levar farofa para a praia e espalhá-la de um helicóptero em cima do Posto 9. Eu deveria saber discursar a favor do metrô em Ipanema e dos pagodeiros de Copacabana. Eu deveria defender o funk.

Eu deveria querer desconstruir o mundo e remontá-lo como numa brincadeira de Lego, encaixotar as peças quebradas e enviá-las para uma recauchutagem em Urano. Eu devia saber explicar convincentemente porque não faz sentido comprar um carro de 400 mil reais, uma jóia de 10 mil, nem tampouco uma coleira de 250 para o cachorrinho.

O que fiz hoje? Mais do mesmo: lancei discursos bestas contra os ricos financiadores do tráfico e distribuí pães-de-mel a crianças no trânsito.

Mas eu poderia sentar debaixo de uma figueira e arregimentar um séquito de voluntários em busca da iluminação total.
Eu deveria compor um rock inesquecível.
Eu deveria, pelo menos, salvar uma vida, antes que a minha própria se esvaia. Mas acho que não chegarei nem a escrever um romance.

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